Fonte: Projeto Draft.
José Luiz Egydio Setúbal, 62, carrega a habilidade de lidar com números no sobrenome. Apesar da facilidade com finanças, a escolha profissional do herdeiro de uma das famílias que controla o Itaú foi outra: formou-se médico pela Santa Casa de Misericórdia de São Paulo, na turma de 1981. Trabalhou em hospitais e chefiava o serviço de pediatria de uma instituição de saúde quando, perto de completar 50 anos, decidiu tirar um ano sabático. O máximo que conseguiu, no entanto, foram meses. Sua irmã, Maria Alice, o chamou para montar uma fundação familiar que levaria o nome da mãe, Tide Setúbal. Abria-se ali um novo campo de interesse.
Desde 2010, José Luiz preside outra fundação, com seu próprio nome, e se divide atualmente entre a administração do Hospital Infantil Sabará — adquirido em 2005 — e o Instituto PENSI (de pesquisa, ensino e projetos sociais voltados à saúde infantil). O hospital é sem fins lucrativos, mas não sem fins financeiros: o dinheiro gerado lá é investido nos projetos do PENSI. O médico e gestor também criou um fundo patrimonial (formado por doações de pessoas físicas e jurídicas) a fim de custear bolsas para alunos de medicina da Santa Casa de Misericórdia de São Paulo e deu a ele o nome de Areguá (grito de guerra dos estudantes da casa).
Sua história com a instituição médica tem ainda outros capítulos. José Luiz foi eleito provedor da Santa Casa de São Paulo, em junho de 2015, e implementou um modelo de gestão empresarial no hospital. Precisava reduzir custos e, para isso, diminuiu o quadro de funcionários e rentabilizou os imóveis que a instituição tinha. O desafio da gestão foi vencido com a integração de departamentos e a criação de uma rotina de negociação de metas. Findo o mandato, cerca de dois anos depois, a Santa Casa contava com um patrimônio líquido estimado em 1 milhão de reais (em dezembro de 2014, estava negativo em 121,1 milhões de reais). O Hospital Sabará, em apuros financeiros quando comprado, também foi recuperado, expandido e tornou-se “um dos principais players de pediatria da cidade”, como o próprio médico define.
Na conversa a seguir, o doutor José Luiz, como é chamado, conta por que o Brasil deveria seguir os modelos de filantropia americanos, e não europeus, diz como os fundos patrimoniais podem sustentar instituições públicas e fala sobre seus investimentos recentes — que incluem startups. Ele também aborda a má gestão da saúde no Brasil. Quando perguntado se assumiria um cargo político na área, ele é direto: “Não tenho saúde para isso”.
Embora venha de uma família do mercado financeiro, o senhor optou pela carreira médica. Como o tino para finanças potencializou seus projetos sem fins lucrativos?
Sempre falo que, muito mais que um gestor, sou médico. O que gosto de fazer é ser pediatra, embora tenha atuado pouco nisso ultimamente. Talvez, pelo meu sobrenome, sempre me empurraram as tarefas de gestão, desde a comissão de formatura, que me colocou como tesoureiro, até a clínica que tive. Realmente tenho facilidade com números. Agora, gestão não é só lidar com números. Quando resolvi ser administrador, fiz uma pós-graduação em Economia da Saúde (ele também estudou no Programa de Liderança Executiva em Primeira Infância em Harvard).
No terceiro setor, em geral, as pessoas não têm afinidade com números e acham que só fazer o bem — sem fazer contas — é o suficiente. Isso é um pouco aflitivo
Qual sua principal virtude como gestor? E como médico?
O bom médico tem duas qualidades que me ajudaram muito como gestor: observar e saber ouvir. Fui treinado como pediatra e, como a criança bem pequena não fala, precisamos observar muito e ouvir os pais ou quem a leva à consulta. Como gestor, saber escutar as pessoas e observar o que está acontecendo para ajudar a encontrar soluções é essencial.
Por que transformar o Hospital Sabará, que era uma Sociedade Anônima (SA), em uma fundação?
Quando decidi fazer uma fundação, sentei com meus três filhos e disse: “Vou pegar uma parte da minha fortuna e fazer isso, vocês estão de acordo? Porque é um dinheiro que, teoricamente, vocês vão receber como herança”. Eles concordaram, mas há 13 anos nenhum deles tinha afinidades para a filantropia. Então, fiz um modelo de fundação que, quando eu morresse, não dependesse deles colocarem dinheiro. Apareceu aí a oportunidade de compra do Hospital Sabará, que era muito pequeno e estava decadente. Comprei o nome, nenhum ativo além disso. Fizemos um projeto de recuperação e expansão onde foi investido o dinheiro doado. Na época, o hospital era uma Sociedade Anônima e dava dividendos. Minha ideia era usá-los para manter a fundação. Conversando com meus advogados, eles sugeriram que era melhor comprar o resto do hospital (até então, ele havia adquirido 70%) porque fundação tem algumas isenções e imunidades.
Quais foram as maiores dificuldades em levar uma gestão empresarial para a Santa Casa de São Paulo, uma instituição filantrópica?
A Santa Casa da cidade é uma instituição multissecular, tem mais de 400 anos e uma força política muito grande. Essa talvez seja a maior dificuldade de geri-la. Tem uma governança antiquada, na qual as pessoas confundem muito os papeis. É uma instituição que, nos últimos anos, vive em crise constante. Tinha um patrimônio imenso que foi sendo consumido. Quando construiu seu primeiro hospital, no Largo do Arouche, a cidade tinha 35 mil habitantes e fizeram uma obra enorme. Depois, foram construindo até o final da década de 1920, quando veio a crise de 1929, e diminuíram as doações. Se tivesse tido uma visão mais americana e menos europeia no início do século 20, quando recebia enormes quantias de doações dos fazendeiros do café, hoje a Santa Casa seria uma grande instituição de ensino no modelo das universidades americanas.
Grandes empresas são conservadoras. Como inovar nesse contexto?
Existe aí um dito popular: “Pense grande e aja pequeno”. É preciso ter um objetivo desafiador e, ao mesmo tempo, ser cauteloso para alcançá-lo. Esse talvez seja o grande segredo da coisa. Nesse momento de disrupção tecnológica, não temos ideia de como será o mundo daqui a dez ou quinze anos. É preciso estar atento a isso e saber qual o momento mais adequado de mudança para não sermos atropelados nem ficar para trás.
Quais seriam as diferenças entre esse modelo europeu e americano que o senhor menciona?
No Brasil, não temos essa visão do pragmatismo americano, mais da filantropia europeia. A filosofia europeia é a de que o governo provê o bem estar social através de impostos. Nos Estados Unidos, os impostos são menores e a comunidade se organiza para resolver suas questões sociais. As grandes universidades da costa leste americana, como Yale, Harvard e Princeton, foram feitas com doações da comunidade no século 17. São modelos diferentes, com resultados semelhantes nos países desenvolvidos. No Brasil a gente tem uma filantropia mais das empresas do que dos indivíduos. Normalmente, as doações são feitas por meio das empresas familiares.
Algumas diferenças ajudam a explicar isso. Nos Estados Unidos, com a alta taxação de herança (em torno de 40%), existe um incentivo para se fazer fundações, mesmo em vida. Bilionários americanos, como Bill Gates, são exemplos disso. Outro fator é que as fundações lá podem atuar fora do país, o que no Brasil não é possível. Aqui, muita gente não pensa em fazer fundações porque responde ao Ministro Público. Nos Estados Unidos também, mas eles têm mais controle, além de mais segurança e proteções.
Pode-se dizer que é impossível sobreviver de doações no Brasil, um país em que a elite financeira não tem a tradição de doar para causas assistenciais?
Faço parte de um grupo de conscientização da doação e tento atuar junto a pessoas de grandes fortunas.
No Brasil, há várias desculpas para não fazer doações, desde a segurança e não querer tornar isso público. É uma questão complexa, falta consciência comunitária mesmo
Por que o modelo de financial endowment, que o senhor trouxe para o Fundo Areguá, ainda é tão raro no Brasil?
O endowment é o que traduzimos como fundo patrimonial, uma doação feita para um fim específico, por exemplo, para um museu ou universidade, em que se usa o resultado financeiro (apenas o rendimento do fundo, e não o dinheiro doado em si) em prol da atividade para a qual ele foi criado. Nos Estados Unidos, o endowment é uma figura jurídica, no Brasil, estamos lutando para que também seja. Já existiam duas leis sobre o tema correndo, uma no Senado e outra na Câmara.
Temer aproveitou o episódio triste do incêndio no Museu Nacional do Rio de Janeiro, em setembro, e fez uma medida provisória sobre o assunto que está sendo discutida no Congresso. Nos Estados Unidos e em alguns lugares da Europa, como a Inglaterra, esse fundo patrimonial cuida das universidades, museus, orquestras. Então, em vez de se doar para a Lei Rouanet, doaria-se para o endowment da Osesp, do Masp, do Museu Nacional ou da USP, por exemplo.
Aliás, a USP já tem alguns endowments, como o Amigos da Poli (da Escola Politécnica, que ministra os cursos de engenharia), o FEA (da Faculdade de Economia). Não precisa necessariamente de uma lei para fazer funcionar um fundo patrimonial. Mas, hoje, as doações feitas para o Fundo Areguá são passíveis de cobrança de imposto.
No Brasil existe essa anormalidade: tudo o que se doa acima de certo valor paga-se 4% de imposto
Recentemente o senhor investiu na startup Amparo, que criou o primeiro serviço de atendimento médico por assinatura do país. O senhor tem investido em outras empresas?
Diretamente só na Amparo, mas tenho cotas no Vox Capital e no Domo Invest, fundos de financiamento de startups. Sou muito procurado para me mostrarem produtos. Às vezes, acabo investindo, caso da Amparo. A startup tem um modelo de atendimento que pode ter muito sucesso, pois trabalha com as operadoras de saúde na prevenção de doenças, ajudando a conter os custos com tratamentos, que são altos. Um modelo que poderia, inclusive, ser usado na saúde publica.
Falando em saúde pública, como o senhor vê a recente polêmica do programa Mais Médicos e as políticas brasileiras para saúde no geral?
O Mais Médicos é um programa muito maior do que a presença dos profissionais cubanos. Houve uma precipitação do governo que vai entrar, mas também é errado o que Cuba fez
Não se abandona simplesmente o programa de uma hora para outra, em uma decisão unilateral, expondo uma população. Isso teria que ser negociado por ambas as partes. Todo o problema da saúde pública no Brasil tem que passar por uma revisão. Existe uma falta de governança do sistema que precisaria se reorganizar de modo a ter mais sinergia entre os níveis municipal, estadual e federal. Há falta de eficiência, dinheiro mal investido. O SUS, mesmo com todas suas falhas, é um modelo interessante, mas precisa melhorar muito.
O senhor trabalharia na gestão de saúde pública? Assumiria algum cargo político?
Não tenho formação nem saúde para isso. Sou um curioso do assunto. Quando estive à frente da Santa Casa de São Paulo por dois anos, estudei bastante, entrei em contato com as frentes de saúde em assembleias, Câmara e Congresso. Mas diria que não tenho formação para assumir nada em termos de saúde pública.
O senhor já falou que não faz sentido a ideia de meritocracia em uma situação em que não exista igualdade de oportunidades. O que diria para a parcela da população brasileira que considera isso “frescura” ou “mimimi”?
As pessoas com ideário liberal falam muito em meritocracia: “Temos que escolher os melhores e os melhores são escolhidos pelo mérito”.
Mérito só existe entre iguais, entre pessoas que tiveram oportunidades semelhantes.
A política de cotas, a meu ver, é interessante. Não sei se é aplicada da melhor maneira. Em um país miscigenado, talvez a cota social fosse mais importante do que a racial — sem deixar de considerar que, certamente, o preconceito racial é algo relevante. Para mim, estão corretas as cotas para ingresso na graduação. Já na pós-graduação ou em um concurso público, não acredito que sejam necessárias. Quem já fez faculdade e vai prestar uma seleção para serviço público já está equalizado.
Fonte: Projeto Draft